
Bando Olodum
Marcos Uzel
Uma mulher negra e grávida deixa a oficina mecânica de um bairro de Salvador dirigindo seu carro. Poucos metros depois, o automóvel é fechado pelo veículo de um homem branco. Começa a discussão de trânsito. Exaltado, o motorista olha para a barriga dela e dispara uma piadinha infame e criminosa: “Você sabe qual é a semelhança entre um carro com o pneu furado e uma negra grávida?... É que ambos estão esperando o macaco”. Essa mesma mulher contou o episódio numa das cenas de platéia do Cabaré da rrrrrraça, o espetáculo mais popular do Bando de Teatro Olodum. Ao terminar, chorou, lembrando do filho.
A atriz Valdinéia Soriano, uma das fundadoras da companhia baiana, estava no palco e nunca esqueceu o depoimento da espectadora. Foi mais um dos muitos relatos sobre racismo que ouviu do público da peça nos últimos dez anos. Sua colega de elenco Auristela Sá cita mais um exemplo gritante, revelado em outra exibição da montagem: a história de uma garota negra que chamou uma amiga branca para acompanhá-la numa entrevista de emprego em um shopping center. Na cara da candidata, que estava com o currículo nas mãos, a gerente da loja convidou a acompanhante a ficar com a vaga.
Nesta semana da Consciência Negra, o elenco do contundente Cabaré está de volta com o microfone na mão, para o seu público abrir a boca e mostrar o quanto a velha história ainda se repete. Mas também celebrar festivamente a longevidade de um espetáculo que tem na leveza e na comicidade outros fortes alicerces. Os dez anos da peça serão comemorados à altura da importância da data. De hoje a domingo, às 20h, no Teatro Vila Velha, a equipe do bem-sucedido projeto vai exibir um vídeodocumentário com depoimentos dos artistas que passaram pela montagem e de militantes do movimento negro.
São nomes representativos como o historiador Ubiratan Castro, as sociólogas Vilma Reis e Luiza Bairros, o secretário de Promoção da Igualdade Luiz Alberto e o ator Lázaro Ramos. “O fato de o Cabaré continuar em cartaz é bom e ruim. Bom porque deu certo e mexeu com o comportamento coletivo de quem viu a peça. Ruim, porque tudo o que foi questionado pelo elenco, em uma década, continua atual. É preciso fazer uma avaliação disso”, posicionou-se Lázaro em entrevista ao Folha, com a intimidade de quem fez parte da primeira formação do espetáculo, no papel do engajado estudante universitário Wensley de Jesus.
Maioria negra - No palco, os convidados Mariene de Castro e Ilê Aiyê (hoje), Jauperi (amanhã) e Lazzo (domingo) vão cantar na cena final da montagem. No foyer, uma mostra retrospectiva documenta os passos da encenação, responsável por um dado formidável: antes da estréia, no dia 8 de agosto de 1997, uma pesquisa feita pela equipe do Vila constatou que apenas 1% do público negro freqüentava o teatro baiano. “Hoje, pelo menos 60% da platéia do Bando é negra, o que é muito positivo”, contabiliza Marcio Meirelles, diretor do Cabaré e atual secretário da cultura do governo do estado.
O ínfimo percentual da época levou o diretor e o elenco a cobrar, na semana de lançamento da peça, meia-entrada para os espectadores que assumissem sua raça na bilheteria do Teatro Vila Velha. A promoção deflagrou debates acirrados na época, repercutiu no Ministério Público e virou notícia nacional até mesmo fora do país, via internet. “Era uma política afirmativa, compensatória. O principal mérito de tudo isso foi termos conseguido levar os negros ao teatro”, sublinha Marcio, que assina o texto da peça em parceria com o Bando.
Deu certo. Desde a primeira temporada, o público-alvo lotou a casa, numa audiência que se prolongou em todas as apresentações e entrou para a história do teatro baiano. O cabaré de idéias do Bando passa por temas como segregação racial, discriminação no trabalho, direito à liberdade religiosa, alienação, ideologia do embranquecimento, indústria cultural e sexualidade negra. Reflexões contundentes de um espetáculo fashion e deliciosamente pop, que demonstra fôlego para continuar passando a raça em revista com provocação e credibilidade.
FICHA
Espetáculo: Cabaré da rrrrrraçaTexto: Marcio Meirelles e Bando de Teatro OlodumDireção: Marcio Meirelles Elenco: Bando de Teatro OlodumOnde: Teatro Vila Velha (Passeio Público)Temporada: de hoje a domingo, às 20hIngresso: R$20 (inteira)
Acessado 29/11/07,às 21:07.
Nenhum comentário:
Postar um comentário